O BRASILEIRO QUE DECIFROU A BOMBA!

Quem é e o que fez o físico do Instituto Militar de Engenharia para, segundo o WikiLeaks, preocupar os Estados Unidos e levar a ONU a investigar se o Brasil tentava produzir armas nucleares.
De uma nova batelada de vazamentos do WikiLeaks, a fome na internet de milhares de telegramas diplomáticos roubados do governo americano, veio uma revelação sobre o Brasil que soou ao mesmo tempo anacrônica e curiosa. A embaixada americana em Brasília notificou Washington da existência de um cientista brasileiro que parecia estar de posse de segredos nucleares americanos. O personagem dos telegramas era um físico cearense chamado Dalton Girão Ellery Barroso, de 59 anos, pesquisador do Centro Tecnológico do Exército, no Rio de Janeiro. Seu livro A Física dos Explosivos Nucleares, publicado há dois anos, chamou a atenção dos diplomatas americanos, que registraram sua apreensão nos telegramas que acabaram sendo vazados pela internet. Washington quis, então, saber como Barroso conseguiu estimar com enorme precisão a arquitetura interna, o peso e os materiais que compõem uma das mais letais e secretas ogivas atômicas do arsenal americano, a W87. Também não parecia crível que Barroso tivesse conseguido pelos próprios meios, conforme demonstrado em um capítulo do livro, simular em computador o complexo e delicado processo de explosões atômicas secundárias que fazem detonar o núcleo da W87, liberando um poder destruidor dezessete vezes maior que o da bomba jogada sobre Hiroshima, em 1945.
Dalton Girão

Os americanos suspeitaram, claro, de espionagem e de que Barroso pudesse ter tido acesso a algum dos poucos supercomputadores do mundo capazes de fazer os cálculos e chegar aos resultados apresentados por ele na obra. O terreno dessa discussão não é acessível às pessoas sem formação matemática, física e computacional do mais alto nível. As interações descritas pelas equações de Barroso detalham eventos que ocorrem em uma ordem precisa dentro de uma bomba do tamanho de uma bola de basquete em períodos de tempo quase impossíveis de compreender: trilionésimos de segundo. Isso seria visto como instantâneo pela imensa maioria das pessoas. Mas uma das belezas fundamentais da física é a noção de que não existem interações instantâneas na natureza – noção contestada teoricamente pelos físicos quânticos, sem interesse, porém, para os experimentos aqui narrados. Na natureza, portanto, tudo exige um tempo para se processar.

Como um físico brasileiro poderia ter feito a engenharia reversa de tão complexo sistema sem um supercomputador? Era o que tentavam descobrir os técnicos da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) que vieram ao Brasil para entrevistar Dalton Barroso. A precisão dos cálculos de Barroso sugeria à AIEA que poderia existir no Brasil um programa nuclear secreto. Seria uma violação do Tratado Internacional de Não Proliferação de Armas Nucleares, assinado pelo Brasil em 1998. Para reforçar as suspeitas, o cientista era ligado a uma instituição militar. A AIEA exigiu informações mais detalhadas sobre os métodos utilizados por Barroso e, sob o argumento de que as fórmulas divulgadas poderiam ser usadas por terroristas, pediu que seu livro fosse recolhido. O pleito provocou uma crise entre o então ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, que queria atender ao pedido, e o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que considerou uma intromissão indevida a interferência da AIEA em atividades acadêmicas de uma instituição subordinada ao Exército brasileiro.
A questão foi discutida com franqueza em um almoço no centro do Rio de Janeiro, no ano passado, reunindo Barroso, um técnico e um diretor da AIEA, um assessor da presidência da Eletrobras Eletronuclear e Santiago Mourão, chefe da Divisão de Desarmamento e Tecnologias Sensíveis do Itamaraty. Dalton Barroso tem boas recordações do almoço, a que ele compareceu por vontade própria e que, na visão dele, encerrou todas as suspeitas. Disse Barroso a VEJA: “Não tinha nada a esconder. Cheguei aos cálculos publicados no livro usando teorias conhecidas da física e da matemática e um programa de computador desenvolvido por mim. Expliquei matematicamente como tinha chegado a esse nível de conhecimento e deixei claro que não fiz testes nem mantive contato com cientistas estrangeiros”.
O episódio envolvendo o físico brasileiro contém diversos ensinamentos. O primeiro é que os países que não possuem arsenais atômicos ficarão cada vez mais perto de tê-los em virtude da disseminação veloz do conhecimento e da capacidade de processamento via internet. O segundo ensinamento é que, mesmo que oficialmente assine tratados internacionais, a maioria dos países que atingiram graus de desenvolvimento técnico-científico compatível deixará que seus cientistas e militares pelo menos estudem os meios de produzir artefatos atômicos.
O Brasil quer a bomba? A resposta é que o Brasil se encaixa na categoria de país em estágio tecnológico compatível com o domínio do ciclo atômico para fins pacíficos e militares. Isso não significa que o Brasil está fazendo uma bomba atômica. O físico José Goldemberg, respeitado mundialmente na área de energia nuclear, avalia que; se fosse esse o interesse nacional, o Brasil teria condições de desenvolver uma bomba nuclear no prazo de cinco anos. Para ele, o mais difícil o Brasil já conseguiu, que é dominar o ciclo de enriquecimento de urânio. “Quem enriquece urânio a 3%, como fazemos hoje, pode enriquecer a mais de 80%, que é o mínimo necessário para a bomba. Dessa forma, a rigor, em pouco tempo poderíamos ter urânio enriquecido o suficiente para um artefato”, explica. Goldemberg afirma que, realisticamente, acha quase impossível que o estado brasileiro não tenha em andamento algum projeto que poderia facilmente ser direcionado para a produção de uma bomba atômica.
José Alencar, vice-presidente do governo passado, declarou sem rodeios que o Brasil deveria desenvolver a bomba. Samuel Pinheiro Guimarães, número 2 do Itamaraty, que depois se tomou ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, é conhecido pela defesa que faz do direito brasileiro de ter um arsenal nuclear. O antigo e atual ministro Nelson Jobim defende a tese de que o Brasil não deve assinar o protocolo adicional do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) que daria à Agência Internacional de Energia Atômica acesso irrestrito às instalações nucleares brasileiras. Ter a bomba é aspiração natural dos militares e de muitos estrategistas civis brasileiros. Tancredo Neves, morto por doença antes de assumir o cargo como primeiro presidente da República depois da ditadura militar, teve uma conversa reveladora com o físico carioca Rex Nazaré Alves, que chefiava a Comissão Nacional de Energia Nuclear. Sob os generais, Rex Nazaré fora encarregado do programa atômico brasileiro que tinha um mal disfarçado viés bélico – incluindo-se o projeto do míssil, o veículo lançador. Nazaré entregou a Tancredo Neves a papelada ultrassecreta e registrou ter ouvido dele: “Vamos fazer isso aí”. Tancredo autorizou os militares a fazer a bomba? Provavelmente um falou o que quis e o outro também ouviu o que quis. Segundo o coronel reformado Ariel De Cunto, ex-chefe do serviço secreto brasileiro e, na ocasião, braço-direito de Rex Nazaré, o chefe saiu convencido de que o presidente eleito dera sinal verde às pesquisas nucleares no mesmo formato em que os militares a vinham tocando.
O Brasil precisa de uma bomba? “Não havendo inimigos externos nuclearizados, nem o Brasil pretendendo assumir uma política regional belicosa, para que a bomba?”, pergunta o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Essa questão é tratada sempre de modo cifrado. Isso torna ainda mais enigmática a frase dita a VEJA pelo ex-presidente José Sarney: “Toda a aspiração que existia de chegarmos a ter armas nucleares terminou no meu governo”. Isso pode ser lido de duas maneiras. A primeira: havia um programa nuclear paralelo, e Sarney deu-lhe oficialmente um fim. A segunda: as aspirações oficialmente admitidas terminaram, mas isso não impede que as armas continuem sendo minuciosamente estudadas – como mostra o trabalho do físico Dalton Barroso.
Filipe Vilicic e Roberta Abreu Lima
Fonte: Ministério das Relações Exteriores*
*O texto já tem pelo menos 2 anos e meio e não é mais possível encontra-lo na página do Ministério das Relações Exteriores.

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